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Paulo Bellinati e Marco Pereira

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Os xodós de Paulo Bellinati e Marco Pereira

por Carlos Calado

Um encontro de músicos de alto quilate, como Paulo Bellinati e Marco Pereira, já seria por si só um evento especial, mas por trás do álbum “Xodós” (lançamento com o selo de qualidade da gravadora ​e produtora ​
 Borandá) há uma amizade de quase cinco décadas. Uma parceria musical marcada por afinidades, perfeccionismo técnico e profunda dedicação a esse instrumento tão essencial na linguagem da música brasileira.

Paulistanos, eles nasceram no mesmo mês de setembro, em 1950, com uma diferença de apenas três dias. Conheceram-se quando cursavam o Conservatório Dramático e Musical do Estado de São Paulo, onde frequentavam aulas de violão com o mesmo mestre: o uruguaio Isaías Sávio.

Também cultivaram praticamente as mesmas referências no violão. “Nosso grande ídolo foi Baden Powell (1937-2000). Naquela época quase não havia partituras de música popular, então o jeito era ralar muito ouvindo os LPs, para tirar de ouvido as músicas que queríamos tocar”, relembra Pereira.

Chegaram a se apresentar algumas vezes em duo, no início dos anos 1970, mas a parceria foi suspensa quando decidiram aprimorar os estudos na Europa. Depois de ingressar no Conservatório de Genebra, na Suíça, Bellinati não demorou a formar um grupo de música instrumental brasileira. Pereira se fixou em Paris, onde obteve o título de mestre em violão clássico e se tornou um conceituado concertista. De vez em quando, um deles convidava o outro para tocarem juntos.

De volta ao Brasil, já em 1981, os dois formaram o trio Pó de Mico, com o percussionista Zé Eduardo Nazário. Apresentaram-se algumas vezes, mas pouco depois Pereira decidiu deixar São Paulo para se tornar professor da Universidade de Brasília. Ali assumiu a recém-criada cadeira de Violão Superior, além de lecionar Harmonia Funcional. Paralelamente, seguiu com sua carreira de solista erudito, mas também gravou elogiados discos de música brasileira. 

Já tocando guitarra, Bellinati uniu-se ao grupo instrumental Pau Brasil, com o qual se destacou como solista e compositor por cerca de uma década. O interesse pela música do violonista e compositor paulista Garoto (1915-1955) reativou sua ligação com o violão, levando-o a uma bem-sucedida carreira de concertista, especialmente em palcos dos Estados Unidos. Em 2002, voltou a fazer parte do grupo Pau Brasil, com o qual continua tocando até hoje.

“Sempre me surpreendi com o fato de termos continuado nossas carreiras em paralelo”, observa Pereira. “Alguns anos atrás tive a ideia de escrever um concerto para dois violões e orquestra. Passei oito meses feito doido, escrevendo. Estava finalizando o último movimento, quando li a notícia de que o Bellinati ia estrear um concerto para dois violões e orquestra. Era muita coincidência”, relembra o violonista, que sugeriu ao amigo, em meados de 2015, que retomassem a parceria.

A reestreia do duo se deu no Clube do Choro de Brasília (DF), algumas semanas depois. No programa dessa apresentação já figurava boa parte do repertório que viria a compor o álbum “Xodós”. Por sinal, os arranjos da dupla para “Eu Só Quero Um Xodó”, “Isso Aqui Tá Bom Demais”, “De Volta pro Aconchego” e “Gostoso Demais”, sucessos do sanfoneiro Dominguinhos (1941-2013), nasceram para atender a um pedido da produção do Clube do Choro, que costuma homenagear figuras importantes da música brasileira. “Eles pedem que a gente toque ao menos uma música do homenageado, mas acabamos tocando cinco. Poderíamos fazer até um disco inteiro dedicado a Dominguinhos”, diz Pereira. Só a toada “Lamento Sertanejo” não entrou no disco, mas o duo costuma toca-la nos shows. “É muito legal, porque as pessoas saem cantando, espontaneamente, assim que a reconhecem”, conta Bellinati.

Se o acaso contribuiu para a criação dessas saborosas versões instrumentais de canções de Dominguinhos, as composições do violonista Dilermando Reis (1916-1977) já frequentavam o repertório de Pereira desde cedo. Tanto que este homenageou o influente mestre do violão, recriando com elegância suas composições no álbum “Dois Destinos” (Borandá, 2016).

O batuque “Xodó da Bahiana”, o choro “Magoado” e a valsa “Se Ela Perguntar”, interpretadas por Pereira em seu disco, ganham novos tratamentos e sonoridades nas releituras do duo. Vale lembrar que, nas 14 faixas de “Xodós”, Pereira toca violão com cordas de nylon no canal esquerdo; o violão com cordas de aço de Bellinati é ouvido no canal direito. 

“Já nos ensaios a gente se surpreendia ao notar que rola uma liberdade, uma grande confiança entre nós, algo que não é comum entre qualquer músico. Se você toca completamente relaxado, com a certeza de que seu parceiro está 100% com você, você toca com mais calor. O rendimento é muito maior”, comenta Bellinati.​

Pereira concorda com o parceiro e observa que a maturidade traz uma relação diferente com a música. “Quando você tem vinte e poucos anos se preocupa em impressionar o público com sua performance, com exuberância técnica. Mais tarde você amadurece e passa a valorizar o resultado musical. Esse disco também tem um pouco de exuberância, mas nós estamos a serviço da música o tempo todo”, considera.  

O repertório de “Xodós” inclui também composições próprias. “Foi difícil escolher”, admite Pereira. “Ficamos com aquelas que poderiam funcionar bem com os dois violões”. De Bellinati entraram a inédita “Fandango” e “Jongo”, composição que se tornou um clássico no repertório do grupo Pau Brasil. Pereira contribuiu com “Choro de Juliana”, “Amigo Leo”, “Santo Amaro” e “Café Compadre”. Hoje, tanto “Choro de Juliana” como “Jongo” são tocadas por violonistas de diversos países, em gravações mais tradicionais do que a ouvida em “Xodós”.  “Algumas de nossas composições entraram no repertório do violão clássico. O cara pega a partitura, decora e a reproduz nos concertos”, observa Pereira. “Como eu e Bellinati também temos em nossa formação a bagagem do jazz, nossas versões acabam ficando diferentes, também por causa das partes improvisadas”.

Os dois admitem terem ficado especialmente satisfeitos com a releitura da lírica valsa “Se Ela Perguntar” (de Dilermando Reis). “Toquei essa música a vida inteira. Minha avó sempre chorava quando a ouvia. Ficamos emocionados ao escutar essa gravação”, conta Bellinati. “Ela possui uma magia que nem a gente consegue entender como conseguiu. É uma coisa rara, uma benção. Talvez tenham baixado alguns anjos no estúdio, na hora em que a tocamos”, brinca Pereira.

Perfeccionistas, eles contam que chegaram a masterizar o disco pela segunda vez, por não terem ficado satisfeitos com o resultado sonoro da primeira versão. “Passei a vida achando que eu era perfeccionista, mas ao fazer esse disco com o Bellinati percebi que eu sou fichinha perto dele. Ele tira até a última gota do som”, diverte-se Pereira. “Esse disco representa a história de nossas vidas, então tínhamos que caprichar”, retruca Bellinati.

Tratando-se desses dois grandes violonistas, que há décadas desenvolvem carreiras consagradas internacionalmente (e já não precisam provar mais nada a ninguém), só poderíamos esperar por algo assim: música brasileira de alta qualidade, tocada com requinte técnico, elegância e emoção.


Carlos Calado
 é jornalista e crítico musical

 

Música

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